[Resenha] Diário de Bitita - Carolina Maria de Jesus
Capa do Livro - Editora SESI-SP |
O “Diário de Bitita” obra póstuma da escritora Carolina Maria de Jesus, apesar de trazer em seu título a palavra “diário”, não se trata de um. É, na verdade, um livro de contos autobiográficos e têm como base as memórias da escritora do período em que viveu em Sacramento com a sua família. Publicado a primeira vez na França em 1982, nele temos a luta diária de uma família negra, pós Lei Áurea através do olhar de uma menina muito esperta de apelido Bitita. O esforço para conseguir trabalho e a tentativa de viver de forma digna, são um dos destaques do livro. Ela narra também a infância humilde, sua relação com a família, período na escola, como surgiu nela o desejo e o gosto pela leitura e sobre os preconceitos que sofreu na sua caminhada, principalmente por ser mulher e negra. Esse, na minha opinião, é a melhor obra publicada da Carolina Maria de Jesus e isso se justifica nos mais variados aspectos. vejamos abaixo.
Cheguei à conclusão de que não necessitamos perguntar nada a ninguém. Com o decorrer do tempo vamos tomando conhecimento de tudo. (p.14).
Primeiro, pela maneira que foi produzido. Nele temos uma autora madura que compreende melhor a sua escrita e a sua poética. O entender do mundo e as suas impressões pessoais acerca dos temas que permeavam a sociedade que lhe rodeava, fazem parte dessa narrativa, acompanhando-a até o desfecho final, a ida para a cidade de São Paulo. Tomando como base as memórias, algumas “descobertas” merecem destaque. Ser mulher, ser negra, ser pobre, ser poetisa, são coisas que ela entende à medida que vai crescendo. “Eu sabia que era negra por causa dos meninos brancos. Quando brigavam comigo, diziam: / – Negrinha! Negrinha fedida!” (p. 95), a sua cor sempre lhe é colocada de forma a lembrar algo, como se a sua condição social lhe empurrasse para uma posição de subalterna, e dessa forma, ela vai entendendo e construindo a sua identidade de pessoa negra e como o racismo podia se manifestar nas várias esferas e da forma mais perversa. Porém, é importante ressaltar que ela nunca aceitou a posição de inferior, pelo contrário, questionava e muitas vezes lutava para ser reconhecida, demonstrando a sua insatisfação frente as injustiças sofridas por ela e pelos seus semelhantes.
Segundo, os contos que são apresentados possuem uma leitura linear e muita precisão nas descrições. Dito isso, se faz necessário compreender que estamos falando de relatos que trazem como suporte as recordações, tanto agradáveis, como dolorosas, da vida da autora. Com isso ela consegue “brincar” com os nossos sentimentos misturando histórias engraçadas e histórias tristes; uma hora temos uma menina que quer ser homem para poder trabalhar e gozar dos privilégios que tal posição lhe oferecia; outra hora temos uma garota ousada, enfrentando com argumentos plausíveis um juiz para se defender de injustiças praticadas pelo filho; em outro momento uma Carolina triste e amargurada pelas situações difíceis que a vida lhe proporcionara; ou uma mulher batalhadora, tentando curar as feridas que tinha nas pernas para voltar ao mercado de trabalho e viver uma vida honesta; dessa maneira, a Via Crucis que foi a vida de Carolina vai se desenrolando, nos brindando com uma montanha russa de emoções.
Terceiro, a denúncia é uma das características marcantes nos textos da autora, nesse em questão, ela se apresenta muito forte, principalmente a situação vivida pela população negra na cidade de Sacramento. Por conseguinte, ela constrói um panorama social de como era a vida dessa população poucos anos após a assinatura a Lei Áurea no Brasil.
Quando os pretos falavam: - Nós agora estamos em liberdade. – Eu pensava: “Mas que liberdade é essa se eles têm que correr das autoridades como se fossem culpados de crimes? Então o mundo já foi pior para os negros? Então o mundo é negro para o negro, e branco para o branco!”. (p. 59).
Sendo uma obra escrita por uma Carolina adulta, o tom de denúncia e crítica utilizado por ela no texto, nos faz acreditar que ela o concebe de forma consciente, tendo em vista que na sociedade o racismo, as desigualdades sociais e a questão de gênero se fazia/faz presente. Dessa forma, ela parte de situações arbitrárias, principalmente praticadas pelas autoridades, para falar das pessoas que durante muito tempo viveram marginalizadas e invisíveis, expondo as injustiças sofridas; “a escravidão é uma cicatriz na alma do negro” (p. 61), apontamentos dos resquícios deixados pelo período da escravidão são igualmente recorrentes, trazendo questionamentos acerca dessa “liberdade” que o negro tanto fala, mas não goza. Crítica o preconceito sofrido também "essas hostilidades por questão de cor é mediocridade. E primitivismo dos predominadores" (p.55).
Com o avançar da leitura, fica evidenciado, o quão é necessário fazer uma reflexão crítica, inclusive sobre a sociedade atual e como essas vozes emergentes estão deixando de ser invisíveis e ganhando os espaços que lhe são devidos. Nesse sentido, Carolina Maria de Jesus é pioneira, o mesmo trabalho foi feito em “Quarto de despejo: diário de uma favelada” (veja resenha completa aqui), no qual ela coloca o dedo na ferida, forçando a discussão sobre temas tão incômodos à sociedade, o que transforma essa e outras obras de Carolina, atribuindo-lhe características de atemporalidade.
O filho do pobre, quando nascia, já estava destinado a trabalhar na enxada. Os filhos do rico eram criados nos colégios internos. Era uma época em que apenas a minoria é que recebia instruções. A minoria alfabetizada desaparecia. (p. 46).
Neste ponto, ela problematiza sobre a desigualdade social, apontando as dificuldades que as pessoas pobres encontravam para adquirir o conhecimento acadêmico, a própria Carolina passou por isso, mas graças a uma das patroas da sua mãe, conseguiu frequentar dois anos do ensino primário; só na escola ela vai descobrir o seu nome de batismo, a estratégia não muito pedagógica que a professora usa para estimular o gosto da menina pelos estudos e o despertar para a importância da leitura nos fornece uma das histórias mais incríveis e envolventes da trajetória percorrida por Bitita.
Assim, é um texto que não se esgota nessa rasa discussão a que eu estou propondo aqui. Cada conto/capítulo tem em si ínfimas possibilidades de discursos, gerando as mais diversas inferências e as mais variadas leituras e debates. Porém, cabe salientar aqui, que a decisão de adequar a escrita da autora às normas padrões gramaticais, na minha opinião, tira um pouco da essência e descaracteriza a representação das vozes marginalizadas a quem Carolina deu visibilidade, embora isso não atrapalhe a leitura da obra. E por fim, temos um texto muito bem escrito e muito coerente dentro do que Carolina Maria de Jesus sempre se propôs a fazer, mais uma vez, a escritora consegue com perspicácia e inteligência, nos prender em suas histórias, onde mergulhamos profundamente no oceano das suas recordações e passamos a conhecer um pouco mais sobre a sua história e os caminhos percorridos até a sua chegada na cidade de São Paulo – SP, antes de se tornar a escritora que conhecemos hoje.
- Oh, mamãe! Eu já sei ler! Como é bom saber ler!Vasculhei as gavetas procurando qualquer coisa para eu ler. A nossa casa não tinha livros. Era uma casa pobre. O livro enriquece o espírito. (p. 129).
Carolina Maria de Jesus - noite de autografo de Quarto de despejo: Diário de uma favelada Créditos: foto retirada da internet |
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