[Resenha] Úrsula - Maria Firmina dos Reis
Maria Firmina dos Reis - Imagem retirada da internet |
Capa do Livro Editora Penguin & Companhia das Letras |
A autora já apresenta no prólogo a sua condição social, “...Sei que pouco vale este romance, porque escrito por uma mulher, e mulher brasileira e de educação acanhada e sem o trato da conversação dos homens ilustrados...”(p. 47), mulher, brasileira vinda da pobreza, fatos esses que no seu entender, não devam influenciar na avaliação da sua escrita, embora ela compreenda e admita que seja ele um livro “mesquinho e humilde”. Com tais afirmações a Maria Firmina dos Reis nos aponta o contexto histórico e social em que a sua obra está sendo publicada, uma época onde escritores, principalmente os que tiveram uma educação considerada a ideal, tinham voz, e aqui ela reivindica o seu lugar, acreditando na força da sua obra.
Falando sobre a obra, à medida que a narrativa vai se desenrolando, percebemos mais nitidamente a construção ideológica de cada personagem. Tancredo é um jovem benevolente que está “fugindo” de um triângulo amoroso entre ele, Adelaide (até então sua noiva) e seu pai. Úrsula, coração igual em benevolência, vive reclusa da sociedade, cuidando da sua mãe doente. Após o acidente, ambos se apaixonam e esse amor cresce à medida que o jovem permanece na casa de Úrsula enquanto se recupera do acontecido. Ambos são personagens que não nos revela uma complexidade psicológica, afora os seus dramas pessoais. Nesse sentido, Maria Firmina dos Reis apela ao amor ultrarromântico para ligar os personagens afetuosamente “o que sinto por vós... é veneração, e à mulher que se venera, rende-se um culto de respeitosa adoração, ama-se sem desejos, e nesse amor não entra a satisfação dos sentidos” (p. 74), afirma Tancredo à Úrsula para justificar os seus sentimentos. Percebemos então, a idealização exagerada da mulher amada, colocando-a muitas vezes como algo inalcançável, inatingível ou algo para ser adorado, com isso fica evidenciado as características da produção literária que marca o período dessa publicação.
O homem que assim falava era um pobre rapaz, que ao muito parecia ter vinte e cinco anos, e que na fraca expressão da sua fisionomia deixava adivinhar toda a nobreza de um coração bem formado. O sangue africano refervia-lhes nas veias; o misero ligava-se à odiosa cadeia da escravidão;Logo em seguida Túlio continua:
...Senhor Deus! Quando calará no peito do homem a tua sublime máxima – ama a teu próximo como a ti mesmo –, e deixará de oprimir com tão repreensível injustiça ao seu semelhante!... Àquele que também era livre no seu país... Àquele que é seu irmão?!. (p. 54).
Aqui percebemos a profundidade com que a autora tratou a questão racial no livro. O discurso antiescravista vai permear toda a sua obra.
Outra passagem que podemos destacar é a narração de mãe Susana acerca da sua vida na África de onde fora tirada, sendo obrigada a deixar para trás sua liberdade, sua terra, sua filha e o seu marido. Relatando também a viagem difícil que fizera até o Brasil nos navios negreiros, ela diz “É horrível lembrar que criaturas humanas tratem a seus semelhantes assim e que não lhes doa a consciência de levá-los à sepultura asfixiados e famintos” (p. 122), para depois afirmar “A dor da perda da pátria, dos entes caros, da liberdade foi sufocada nessa viagem pelo horror constante de tamanhas atrocidades” (p. 123). Por conta dessa consciência e denúncia da maneira como eram tratados os negros, a autora reafirma também a sua Negritude, indo de encontro às injustiças sofridas pelos seus semelhantes. Por tais motivos, “Úrsula” é considerada uma obra abolicionista e Maria Firmina dos Reis como a primeira romancista brasileira, assim como a percussora da literatura afro-brasileira.
Outra característica que chama a atenção no texto, essa parte da editora, foi a manutenção da grafia, visto o contexto em que foi publicado, a editora optou apenas por uma atualização das regras gramaticais, como sinaliza em uma nota antes do início do texto, aderindo ao Acordo Ortográfico de 1990, apenas para adaptar questões relacionadas à pontuação, concordância verbal e etc. O que isso quer dizer? Que o texto traz o vocabulário da época, com palavras e colocações que não são utilizadas comumente nos dias atuais. Cito como exemplo uma das falas de Fernando, tio de Úrsula, ao descobrir que Tancredo casou-se com a sua amada, que diz, “Roubaste-ma, e envileceste-a a meus olhos! Cuspiste-me a face, e nodoaste-a com teu amor impuro!... Poluíste-a com o teu hálito... Tancredo, esse ósculo trespassou-me o coração de ciúme”, (p. 194). Cabe salientar que ao manter essa linguagem, a editora assegura a autenticidade da obra, dando-lhe o respeito devido, levando em consideração a importância da obra para a literatura brasileira.
Finalizando, Com a publicação de “Úrsula”, Maria Firmina dos Reis faz história, e hoje é considerada por muitos estudiosos, a primeira romancista brasileira. Além do mais, a obra traz uma perspectiva interessante sobre os diversos temas que norteavam a sociedade maranhense da época, dentre os quais destacamos a crítica ao sistema patriarcal, as injustiças, principalmente as sofridas pelas mulheres e pelos negros. É interessante perceber também no enredo, a forma com que os personagens negros são tratados, como ganham voz e consciência, para citar as injustiças sofridas durante a vida. Enfim, essa é uma obra que traz em sua essência implicações mais profundas do que de fato aparenta. É um texto denso, ultrarromântico que pode nos soar antiquado para os dias atuais e que em sua linguagem rebuscada, nos apresenta um mundo longínquo, trazendo consigo um olhar crítico e ampliado sobre o passado, contribuindo de forma positiva para a formação da literatura aqui no Brasil.
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