[Resenha] Úrsula - Maria Firmina dos Reis

Maria Firmina dos Reis - Imagem retirada da internet
Maria Firmina dos Reis nasceu em 11 de março de 1825 em São Luís – Maranhão. Mudou-se junto com a família para São José de Guimarães, viveu um tempo na casa da sua tia que tinha uma condição financeira melhor. Mulher e negra, ela é considerada uma das primeiras romancistas brasileiras. Maria Firmina dos Reis marcou a história tanto pela ousadia como pela sua garra, em uma época em que a escrita ela dominada por homens, ela conseguiu romper essa barreira e escrever o seu primeiro romance “Úrsula”, que é tido como um romance abolicionista, o primeiro da nossa literatura, e também é considerado o percussor da Literatura Afro-brasileira. Além disso, ela rompeu paradigmas ao concorrer a uma cadeira como professora de primeiras letras na cidade de Guimarães, obtendo êxito, criou também uma classe mista, algo que não era considerado normal para aquela realidade. Morreu em 11 de novembro de 1917, com 92 anos na cidade já citada.

Capa do Livro
Editora Penguin &
Companhia das Letras
“Úrsula” foi publicado em 1860, o romance em questão trata-se de uma história de amor trágico. Tancredo saindo de uma decepção amorosa e Úrsula que tem como único apoio na vida a sua mãe, Luiza B., paralitica e muito doente que se segura aos últimos suspiros de vida para não deixar a sua pobre filha desamparada. Úrsula e Tancredo se apaixonam após o rapaz sofrer um acidente que o deixa entre a vida e a morte, e assim eles protagonizam um amor impossível que tem como principal impedimento o tio da moça que após um longo afastamento das mulheres da família, ao ver Úrsula já crescida, se apaixona à primeira vista, ela por sua vez já está enamorada de Tancredo. Fernando, seu tio tenta de tudo para afastar o casal, inclusive se reaproxima da irmã a quem ele não via há muito tempo, ao não conseguir possuir o amor da sobrinha, resolve se vingar daquele que lhe roubou o amor. Combinado a essa história de amor trágico, temos também Túlio e mãe Susana, personagens negros e que possuem papel fundamental na narrativa, Maria Firmina dos Reis deu-lhes voz, permite que ambos reflitam sobre as suas vidas e as injustiças já sofridas, mãe Susana rememora sobre tudo que perdeu ao ser tirada da sua terra e Túlio que se vê obrigado a se separar da sua mãe por causa da escravidão. É uma trama envolvente e tem um final surpreendente e que nos mostra um pouco do estilo literário produzido em meados do século XIX. 

A autora já apresenta no prólogo a sua condição social, “...Sei que pouco vale este romance, porque escrito por uma mulher, e mulher brasileira e de educação acanhada e sem o trato da conversação dos homens ilustrados...”(p. 47), mulher, brasileira vinda da pobreza, fatos esses que no seu entender, não devam influenciar na avaliação da sua escrita, embora ela compreenda e admita que seja ele um livro “mesquinho e humilde”. Com tais afirmações a Maria Firmina dos Reis nos aponta o contexto histórico e social em que a sua obra está sendo publicada, uma época onde escritores, principalmente os que tiveram uma educação considerada a ideal, tinham voz, e aqui ela reivindica o seu lugar, acreditando na força da sua obra.

Falando sobre a obra, à medida que a narrativa vai se desenrolando, percebemos mais nitidamente a construção ideológica de cada personagem. Tancredo é um jovem benevolente que está “fugindo” de um triângulo amoroso entre ele, Adelaide (até então sua noiva) e seu pai. Úrsula, coração igual em benevolência, vive reclusa da sociedade, cuidando da sua mãe doente. Após o acidente, ambos se apaixonam e esse amor cresce à medida que o jovem permanece na casa de Úrsula enquanto se recupera do acontecido. Ambos são personagens que não nos revela uma complexidade psicológica, afora os seus dramas pessoais. Nesse sentido, Maria Firmina dos Reis apela ao amor ultrarromântico para ligar os personagens afetuosamente “o que sinto por vós... é veneração, e à mulher que se venera, rende-se um culto de respeitosa adoração, ama-se sem desejos, e nesse amor não entra a satisfação dos sentidos” (p. 74), afirma Tancredo à Úrsula para justificar os seus sentimentos. Percebemos então, a idealização exagerada da mulher amada, colocando-a muitas vezes como algo inalcançável, inatingível ou algo para ser adorado, com isso fica evidenciado as características da produção literária que marca o período dessa publicação. 

Todavia, o que de fato marca essa obra é a postura dos personagens negros no decorrer da obra, trazendo originalidade ao texto. Como exemplo podemos citar o contato inicial entre Túlio e Tancredo logo no primeiro capítulo. Nesse contato, temos o contraste entre os personagens branco e o negro. Túlio ao ver Tancredo caído, se compadece da sua dor e implora aos céus que salve aquele homem:
O homem que assim falava era um pobre rapaz, que ao muito parecia ter vinte e cinco anos, e que na fraca expressão da sua fisionomia deixava adivinhar toda a nobreza de um coração bem formado. O sangue africano refervia-lhes nas veias; o misero ligava-se à odiosa cadeia da escravidão;
Logo em seguida Túlio continua:
...Senhor Deus! Quando calará no peito do homem a tua sublime máxima – ama a teu próximo como a ti mesmo –, e deixará de oprimir com tão repreensível injustiça ao seu semelhante!... Àquele que também era livre no seu país... Àquele que é seu irmão?!. (p. 54). 
Aqui percebemos a profundidade com que a autora tratou a questão racial no livro. O discurso antiescravista vai permear toda a sua obra.

Outra passagem que podemos destacar é a narração de mãe Susana acerca da sua vida na África de onde fora tirada, sendo obrigada a deixar para trás sua liberdade, sua terra, sua filha e o seu marido. Relatando também a viagem difícil que fizera até o Brasil nos navios negreiros, ela diz “É horrível lembrar que criaturas humanas tratem a seus semelhantes assim e que não lhes doa a consciência de levá-los à sepultura asfixiados e famintos” (p. 122), para depois afirmar “A dor da perda da pátria, dos entes caros, da liberdade foi sufocada nessa viagem pelo horror constante de tamanhas atrocidades” (p. 123). Por conta dessa consciência e denúncia da maneira como eram tratados os negros, a autora reafirma também a sua Negritude, indo de encontro às injustiças sofridas pelos seus semelhantes. Por tais motivos, “Úrsula” é considerada uma obra abolicionista e Maria Firmina dos Reis como a primeira romancista brasileira, assim como a percussora da literatura afro-brasileira.

Outra característica que chama a atenção no texto, essa parte da editora, foi a manutenção da grafia, visto o contexto em que foi publicado, a editora optou apenas por uma atualização das regras gramaticais, como sinaliza em uma nota antes do início do texto, aderindo ao Acordo Ortográfico de 1990, apenas para adaptar questões relacionadas à pontuação, concordância verbal e etc. O que isso quer dizer? Que o texto traz o vocabulário da época, com palavras e colocações que não são utilizadas comumente nos dias atuais. Cito como exemplo uma das falas de Fernando, tio de Úrsula, ao descobrir que Tancredo casou-se com a sua amada, que diz, “Roubaste-ma, e envileceste-a a meus olhos! Cuspiste-me a face, e nodoaste-a com teu amor impuro!... Poluíste-a com o teu hálito... Tancredo, esse ósculo trespassou-me o coração de ciúme”, (p. 194). Cabe salientar que ao manter essa linguagem, a editora assegura a autenticidade da obra, dando-lhe o respeito devido, levando em consideração a importância da obra para a literatura brasileira.

Finalizando, Com a publicação de “Úrsula”, Maria Firmina dos Reis faz história, e hoje é considerada por muitos estudiosos, a primeira romancista brasileira. Além do mais, a obra traz uma perspectiva interessante sobre os diversos temas que norteavam a sociedade maranhense da época, dentre os quais destacamos a crítica ao sistema patriarcal, as injustiças, principalmente as sofridas pelas mulheres e pelos negros. É interessante perceber também no enredo, a forma com que os personagens negros são tratados, como ganham voz e consciência, para citar as injustiças sofridas durante a vida. Enfim, essa é uma obra que traz em sua essência implicações mais profundas do que de fato aparenta. É um texto denso, ultrarromântico que pode nos soar antiquado para os dias atuais e que em sua linguagem rebuscada, nos apresenta um mundo longínquo, trazendo consigo um olhar crítico e ampliado sobre o passado, contribuindo de forma positiva para a formação da literatura aqui no Brasil.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

[Resenha] Diário de Bitita - Carolina Maria de Jesus

[Resenha] Casa de Alvenaria: diário de uma ex-favelada – Carolina Maria de Jesus

[Frase] - Poema "O colono e o fazendeiro" - Carolina Maria de Jesus