[Resenha] Quarto de Despejo: diário de uma favelada - Carolina Maria de Jesus
Carolina Maria de Jesus - Acervo IMS |
Carolina Maria de Jesus nasceu na
cidade de Sacramento em 14 de março de 1914. Bitita como era chamada pelos seus
parentes, era uma criança diferente das crianças da época, pois a mesma, desde
pequena era muito astuta e curiosa. Semianalfabeta, frequentou apenas dois anos
da escola primária, período esse que despertou o seu gosto pela leitura. Passa
boa parte da sua juventude em Sacramento em companhia da sua mãe, muda-se para
São Paulo - SP e vai morar na favela do Canindé, onde escreve a sua obra mais
famosa e com a ajuda do jornalista Audálio Dantas lança o seu primeiro livro - Quarto
de despejo: diário de uma favelada. Carolina morreu em 13 de fevereiro de 1977
em decorrência do agravamento dos sintomas da asma, hoje é considerada um dos
expoentes da Literatura Negra do Brasil.
Capa do Livro Ilustrações: Vinicius Rossignol Felipe |
O livro teve a sua primeira
publicação no de 1960, sendo sucesso de vendas e de crítica. Foi traduzido para
quatorze línguas levando Carolina ao status de escritora internacional. Mas o
que leva uma mulher, negra, moradora de uma favela, semianalfabeta a escrever? A também escritora Conceição
Evaristo ao se fazer esse questionamento em um dos seus textos, citando suas
experiências próprias e fazendo referência a escrita de Carolina, responde que:
“... Escrever pressupõe um dinamismo próprio do sujeito da escrita... E, em se tratando de mulheres negras, que historicamente transitam por espaços culturais diferenciados dos lugares ocupados pela cultura das elites, escrever adquiri um sentido de insubordinação. Insubordinação que pode se evidenciar, muitas vezes desde uma escrita que fere ‘as normas cultas’ da língua (portuguesa), caso exemplar o de Carolina Maria de Jesus, como também pela escolha da matéria narrada [1]” (p.21).
E é dessa forma que recebemos “Quarto de despejo: diário de uma favelada”. Os eventos narrados, detalham os anos vividos na favela do Canindé, situada na Zona Norte de São Paulo e serviu como palco para as várias histórias vistas e documentadas por Carolina em seus diários entre os anos 1955 e 1960.
O livro é notório nos mais diversos aspectos, começando pela DESCRIÇÃO DO COTIDIANO da vivência na favela do Canindé. Carolina narra o dia a dia dela e o das pessoas que a rodeiam demonstrando sempre a sua falta de contentamento por estar morando e criando os seus filhos naquele lugar. Ao falar dessas personalidades, mostra a forma primitiva que as pessoas assumem em determinadas situações e do aspecto da favela geral, aqui ela encontra a metáfora que dá origem ao nome do livro:
“... Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita com seus lustres de cristais, seus tapetes de viludos, almofadas de sitim. E quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo” (p.37).
Com esse trecho, podemos perceber a insatisfação dela e a desigualdade social muito evidente. A escrita chama atenção pelo tom informal que assume parecendo uma conversa entre a Carolina e os seus leitores. Falando sobre isso, o DISTANCIAMENTO DA NORMA CULTA dá um tom de genialidade a obra. Como já citado, Carolina estudou apenas dois anos da escola primária, o que não lhe impediu de se tornar a escritora respeitada que é hoje. Em diversos trechos podemos perceber a espontaneidade na sua escrita e isso não diminui o texto, pelo contrário, valoriza-o, colocando os leitores mais próximo do contexto e da vivência da autora. Acredito que a falta de edição no texto pelo Audálio Dantas, foi justamente para nos dar a dimensão e a profundidade do que está sendo dito no texto. Uma outra característica importante percebida por ele, é DAR VOZ para quem vive aquela realidade, lembrando que o conceito de “lugar de fala [2]” naquele momento ainda não era discutido. Dito isso, Audálio que vai até o Canindé com intuito de escrever sobre o lugar, por acaso descobre uma moradora que ameaçava colocar o nome dos seus vizinhos em seus diários.
Outro tema que merece destaque em nosso texto, o mais importante pela recorrência em suas páginas, é a FOME. As dificuldades de uma mãe para alimentar os seus três filhos, na extrema pobreza, aparece em forma de relato e por meio da escrita ela denuncia a situação a qual vivenciava. Em uma das passagens mais dramáticas Carolina fala “e assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual – a fome!” (p.33), em outra ela compara a tontura da fome com a embriaguez e continua “... a fome nos faz tremer. Percebi que é horrível ter só ar dentro do estomago”, (p.44).
Ela narra também o seu desespero por algumas vezes não conseguir alimentar os seus filhos “Como é horrível ver um filho comer e perguntar: ‘Tem mais? Esta palavra 'tem mais' fica oscilando dentro do cerebro de uma mãe que olha as panelas e não tem mais” (p.38). Nesse sentido, o livro é duro, pois mostra a realidade, não muito diferente dos dias atuais, das pessoas que vivem na extrema pobreza tendo que sobreviver com tão pouco. Essas coisas aparecem e são transformadas em poesia na voz da Carolina e talvez por isso Quarto de despejo” tenha feito tanto sucesso.
“... A vida é igual um livro. Só depois de ter lido é que sabemos o que encerra. E nós quando estamos no fim da vida é que sabemos como a nossa vida decorreu. A minha, até aqui, tem sido preta. Preta é minha pele. Preto é o lugar onde eu moro” (p.167).
Além de tudo isso, podemos perceber trechos que tratam sobre o seu orgulho de ser negra, o racismo, a sua posição Feminista, principalmente pelo não querer casar com medo de perder a sua liberdade, também o refúgio encontrado na escrita e dedicação a leitura, que deixa evidenciado a sua paixão pelos livros e a importância deles na sua trajetória, muitas vezes usados como forma de alento e distração de uma existência considerada por ela como miserável.
N a minha opinião, “Quarto de despejo: Diário de uma favelada” é uma leitura muita rica, onde a cada parte do livro novos temas surgem, temas esses que são atemporais, cada pequeno fragmento do texto, abre margem para discussões profundas. O livro é considerado uma obra literária documental de contestação, pelo seu cunho jornalístico e pela forma de denúncia e hoje é uma das referências da Literatura Negra Brasil. Muita coisa discutida e criticada pela Carolina Maria de Jesus em seu livro, ainda é latente na sociedade atual. Ela, utilizando-se da sua única arma, a escrita, nos brindou com esse belíssimo relato que mais de 50 anos depois ainda nos choca pela sua atualidade.
“Há de existir alguem que lendo o que eu escrevo dirá... isto é mentira! Mas, as misérias são reais” (p.46).Referências
[1] Texto: Da grafia-desenho de minha mãe um dos lugares de nascimento da minha escrita. Conceição Evaristo. Publicado no livro: Representações Performáticas Brasileiras: teorias, práticas e suas interfaces. (org.) Marcos Antônia Alexandre. Belo Horizonte, Mazza edições, p.16-21.
[2] Ver Djalma Ribeiro. O que é lugar de fala?
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