[Resenha] Ponciá Vicêncio - Conceição Evaristo
Capa do livro - Editora Pallas “O amanhã de Ponciá era feito de esquecimento” (p. 18).
Em “Ponciá Vicêncio” de Conceição Evaristo, a voz da negritude ecoa por meio da história de vida de uma moça (personagem-título) negra, pobre, neta de escravos, que nasce predestinada a receber do seu avô, que enlouqueceu por não suportar a escravidão, uma herança. A obra narra a passagem de Ponciá Vicêncio, desde a infância até a vida adulta, apresentando aos leitores os personagens marcantes da sua vida, como o seu pai, sua mãe, irmão e o seu companheiro.
A história começa a se desenrolar quando Ponciá resolve sair do seu povoado, Vila Vicêncio, para ir morar na cidade grande, deixando para trás a sua mãe, Maria Vicêncio, e o seu irmão Luandi. Seu plano inicialmente, é buscar uma vida melhor, juntar dinheiro, e voltar a sua Vila para buscar sua mãe e o seu irmão. Na cidade, ela encontra trabalho, um companheiro, mas, não consegue ter filhos, passando por sete abortos e essa falta de vínculos familiares, vai levando a personagem a mergulhar num vazio de si que influência na sua personalidade e estado de espírito.
“Ponciá havia tecido uma rede de sonhos e agora via um por um dos fios dessa rede destecer e tudo se tornar um grande buraco, um grande vazio”. (p. 24).
Trata-se de uma trama psicológica que retrata o ser humano em seu íntimo, o que nos leva a perceber que dentro de nós, temos um pouco de Ponciá, Maria, Luandi, soldado Nestor, Nêngua Kainda e etc. O livro o tempo inteiro brinca com as nossas emoções, revivendo as memórias dos personagens, que é um convite para revisitarmos as nossas próprias memórias, ressignificando as nossas próprias vidas.
A solidão é um tema recorrente na obra, as histórias vão se cruzando, tecendo o destino dos personagens. Com os encontros no início, os desencontros do meio para o fim e o reencontro no final, Conceição Evaristo nos leva a vagar pelos pensamentos e pela vida dos personagens, revelando a realidade e o íntimo de cada um. Além da solidão, temas como, os estereótipos e situação da população negra, força da mulher negra e racismo, são tratados na obra e a autora faz isso com uma beleza e qualidade vista hoje em pouquíssimos autores.
“(...) ao perceber a solidão da companheira e a sua própria, o homem viu na mulher o seu semelhante e tomou-se de uma ternura intensa por ela. (...) Pouco a pouco, mais e mais, Ponciá se adentrava num mundo só dela, em que o outro, cá de fora, por mais que gostasse dela, encontrava uma intransponível porta.” (p. 93).
Mais uma vez a escrita de Conceição Evaristo é muito forte, demonstrando o poder dessa escrita, ela como uma mulher negra, que se levanta, desafia a história, revela todo o apagamento que a população negra sofreu no decorrer da história, fazendo a sua voz ser ouvida. A isso Conceição chama de transgressão, eu chamo aqui de resistência, com a sua escrita decidida, destemida, direta e belíssima que se fez ser ouvida, não só aqui no Brasil, também no mundo. Falando ainda sobre a linguagem do texto, as palavras trazem a sua marca registrada, juntando palavras, muitas vezes opostas, formando uma nova palavra, para descrever um sentimento – mulher-miragem, presença-ausência, vozes-irmãs, estrela-maior, estrela-mulher, realidade-sonho.
Outra curiosidade, é a junção da narrativa com a arte do barro, produzida por Ponciá e sua mãe. Com isso, a escritora brinca com o passado e o presente da sua personagem principal, passando por todas as fases da vida de Ponciá, revelando os caminhos traçados pela personagem; os ânimos, desânimos, sofrimentos, alegrias, prazeres, angústias, que ela passa até que a herança do seu avô se realize em sua vida. Nesse romance, isso fica muito evidente, pois são eles, passado, presente e a sua arte com o barro, que moldam a identidade de Ponciá Vicêncio.
“Ponciá sabia dessas histórias e de outras ainda, mas ouvia tudo, como se fosse pela primeira vez. Bebia os detalhes remendando cuidadosamente o tecido roto de um passado, como alguém que precisasse recuperar a primeira veste, para nunca mais se sentir desamparadamente nua.” (p. 55).
Finalizando, a importância de Conceição Evaristo no cenário literário brasileiro está mais que evidente. “Ponciá Vicêncio”, seu primeiro romance, ela aborda temas como, as questões raciais, solidão, desigualdade social, marginalização da população negra, a sua escrita leve e sempre assertiva, coroa a sua relevância para a literatura negra no Brasil. Portanto, “Ponciá Vicêncio” é uma obra que eu indico, e a sua leitura, como todos os outros textos de Conceição Evaristo, proporciona uma experiência íntima e muito particular para cada leitor.
Sobre a autora:
Getty Images/Reprodução |
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