[Resenha] A paixão segundo G.H. – Clarice Lispector

Capa do Livro  - Editora Rocco
É difícil perder-se. É tão difícil que provavelmente arrumarei depressa um modo de me achar, mesmo que achar-me seja de novo a mentira de que vivo. (p. 10) 

Um texto com a marca Clarice Lispector. Com uma escrita precisa e repleta de figuras de linguagem, ela nos apresenta o que para muitos estudiosos é, o seu melhor registro literário. “A paixão segundo G.H.” no primeiro momento, o enredo pode parecer confuso, uma mulher, sentada a mesa em sua casa, tomando café da manhã e pensando sobre a vida. Cheia de incertezas, ela começa a refletir sobre os rumos que a sua vida tomara até aquele momento, aqui, Clarice apelando para a sua escrita sentimental, nos faz mergulhar nesse mar de incertezas, incorporando também a posição de narrador personagem.

Com uma escrita leve, bem no estilo “clariciano”, a autora vai sutilmente abrindo caminhos e ganhando espaço em nossas emoções, mas, ao mesmo tempo que é sútil, ela nos ataca agressivamente, mostrando as mais diversas situações opostas que a vida pode nos proporcionar; para G.H., bastou um simples encontro com uma barata, num minúsculo quarto de empregada, foi capaz de lhe revelar milhares de sentimentos que estavam escondidos em seu subconsciente.

Entregar-me ao que não entendo será pôr-me a beira do nada. Será ir apenas indo, e como uma cega perdida num campo. Essa coisa sobrenatural que é viver. O viver que eu havia domesticado para torná-lo familiar. Essa coisa corajosa que será entregar-me e que é como dar a mão à mão mal assombrada do Deus, e entrar por essa coisa sem forma que é um paraíso. Um paraíso que não quero! (p. 16).
Falando no encontro com a barata, vocês conseguem imaginar como o descrever de uma barata pode se tornar uma escrita poética? Não?! Pois é, aqui mais uma vez temos a genialidade da escritora que consegue transpor as barreiras do feio, apresentando nova significação e transformando algo que possa parecer asqueroso em belo.
Foi então que a barata começou a emergir do fundo./Antes o tremor anunciante das antenas./
Depois, atrás dos fios secos, o corpo relutante foi aparecendo. Até chegar à tona da abertura do armário./
Era parda, era hesitante como se fosse enorme de peso. Estava agora quase toda visível.” (p. 51).
Seguindo, a autora utiliza como metáfora o quarto da empregada para se referir aos nossos sentimentos internos e a dificuldade de perceber todas as nossas falhas. Com isso, a crise existencial que se abate em G. H serve como estopim para uma autoavaliação e percepção do seu eu. Assim, a maneira direta que G. H se comunica com o leitor, deixa a leitura mais íntima e mais pessoal, como se estivemos relatando ou ouvindo o relato de um amigo e isso nos aproxima mais do texto.
A vida, meu amor, é uma grande sedução onde tudo o que existe se seduz. Aquele quarto que estava deserto e por isso primariamente vivo. Eu chegara ao nada, e o nada era vivo e úmido. (p. 60).
Outra coisa que chama a atenção na obra, é a forma como Clarice termina e começa um novo capítulo, trazendo sempre a última frase do capítulo anterior como primeira frase do capítulo seguinte, isso dá a sensação de continuidade, como se o relato não tivesse acabado. E assim a história vai se desenrolando, por meio de uma grande reflexão (ou crise existencial), a autora nos convida a abandonarmos as nossas máscaras e nos deixarmos ver como realmente somos, a pessoa crua por debaixo das indumentárias nossas de cada dia. 

Por fim, temos aqui um texto que não tem leitura fácil, mas ao qual eu indico a todos, e apesar da linguagem leve usada por Clarice, cada palavra contém infinitas interpretações. Para G.H., bastou o encontro com uma barata, num pequeno quarto de empregada, para que ela experimentasse a maior metamorfose da sua vida até aquele momento, trazendo reflexões profundas e a admissão de sentimentos nunca revelados pela mesma. É interessante perceber também que, para ler Clarice Lispector, devemos desgrudar das várias influências literárias que nos acompanham, pois, os seus textos são um mundo à parte, algo totalmente novo, é o tipo de leitura que precisamos saborear. Seus escritos são rios profundos ou icebergs. É preciso ler com bastante atenção, caso contrário só conseguiremos arranhar a sua superfície.

Sobre a autora:
Foto retirada da internet.
Clarice Lispector, escritora e jornalista, nasceu em 10 de dezembro de 1925, mudando ainda pequena para o Brasil. Naturalizada brasileira, tornou-se uma das maiores escritoras do país, sendo reconhecida também com uma das mais importantes escritoras do século. Fez parte da terceira fase dos poetas modernistas brasileiros, tendo na novela literária “A hora da estrela”, seu último livro publicado em vida, um dos seus maiores sucessos. Além dessa, escreveu vários romances de sucesso, a exemplo, “Perto do Coração Selvagem (1943, livro de estreia), “A paixão segundo G.H” (1964), “Um sopro de vida” (1978) entre outros. Muito versátil se destacou também na escrita de contos, crônicas e textos voltados para a literatura infanto-juvenil. Clarice morreu em 09 de dezembro de 1977 no Rio de janeiro, um dia antes do seu aniversário de 57 anos, deixando um legado literário consagrado e aclamado até os dias atuais.

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