[Resenha] Clara dos Anjos – Lima Barreto

Clara dos Anjos - 1ª ed. - Editora Mérito S.A.
Narrado em terceira pessoa, Clara dos Anjos é uma jovem carioca, que mora com os seus pais, Joaquim dos Anjos e Engrácia, no subúrbio do Rio de Janeiro. Ela, uma garota pobre e mulata, o seu pai trabalha como carteiro da cidade, e mesmo com todas as dificuldades enfrentadas, ela recebeu a melhor educação possível dos seus pais, uma educação que pode ser confundida como uma superproteção. Clara é uma menina sonhadora e inocente, que sentia vontade de sair e conhecer um pouco mais da cidade, como faziam as suas amigas, porém, a sua mãe não saia e nem permitia que a menina o fizesse, as poucas vezes que lhe era permitido sair, era em companhia de uma vizinha, a qual os seus pais confiava. Essa realidade muda na comemoração do aniversário de dezessete anos de Clara, lá ela conhece Cassi, o antagonista do romance, que era conhecido na cidade por seduzir as mulheres e após conseguir o que queria com elas, abandonavam-nas a própria sorte, com isso ele colecionava processos judiciais, os quais sempre eram encobertos, graças a posição social que a sua mãe gozava. Clara e Cassi se conhecem, ela se encanta pelo rapaz, ele deseja a beleza e a juventude dela, as ações anteriores culminam para esse encontro, e a partir desse relacionamento, a trama se desenrola. 

“Clara dos Anjos” é uma obra póstuma do escritor Lima Barreto que possui valor histórico, tanto para literatura nacional, como para o entendimento e a construção da literatura afro-brasileira. Ambientada no início do século XX, o valor de atemporalidade da obra se dá pelas inúmeras críticas encontradas no decorrer do texto. Nessa época, o Rio de Janeiro passava por diversos problemas sociais, estruturais e de saúde pública. Por estar inserido no Realismo-Naturalismo, “Clara dos Anjos” tem forte influência científica, assim, como nos romances dessa época, buscavam representar, por meio da sua poética, a visão da sociedade, registrando com base em dados científicos, a realidade social em todos os seus aspectos, bons ou ruins. Nesse sentido, o romance apresenta uma denúncia direta e as injustiças sociais, vivenciadas no subúrbio do Rio de Janeiro por sua população e pela garota chamada Clara dos Anjos. 

Tocando em temas espinhosos, como o racismo e os problemas sociais, e tendo como personagem principal uma mulher, negra e pobre, julgando pela citação inicial do autor João Ribeiro “Alguns as desposavam (as índias); outros, quase todos, abusavam da inocência delas, como ainda hoje das mestiças, reduzindo-as por igual a concubinas e escravas”, e às vítimas do vilão, Cassi, percebemos também a crítica áspera ao papel da mulher na sociedade e ao estigma, principalmente da mulher negra e pobre, que sempre foi reduzida, sendo colocada abaixo na escala social. 

A escolha por um antagonista com as características de Cassi, malandro, não trabalha, ganha dinheiro com brigas de galo e que se utiliza do prestigio de sua mãe para se safar das pilantragens que comete; o autor imprime no vilão os traços da sociedade que ele tanto repudiava, transparecendo mais uma vez a denuncias aos costumes, qualificado como “baixos” para ele. 

Vários personagens aparecem na obra, mas, um merece destaque nessa pequena análise, o Leonardo Flores, considerado o grande poeta. Há um entendimento, segundo alguns estudiosos, que história do poeta se mistura com a história do próprio autor, sendo apontando como uma “autobiografia”. O enredo revela um personagem amargurado, alcoólatra, que sofre com os fantasmas de ter sido um poeta famoso e depois viver recluso, em total esquecimento, conhecido apenas pelas pessoas que convivem com ele. Lima Barreto não foi reconhecido como poeta, somente após a sua morte isso acontece, teve uma vida boémia, entregue à bebida, morrendo aos 41 anos em decorrência da vida desregrada que vivia. 

A obra conta também com uma linguagem descuidada, simples e coloquial, reproduzindo vários termos típicos (gírias) utilizados no período em que foi escrita, pois, a principal preocupação de Lima Barreto era demonstrar a realidade social em que as pessoas viviam. Fugindo diversas vezes das regras gramaticais, o que por diversas vezes irritava os letrados da época, percebemos aqui um dos indicativos para o não reconhecimento dele como escritor em vida, lembrando que a cor da sua pele também teve forte influência nesse processo. É preciso salientar também, a destreza do autor ao descrever as pessoas e os espaços, a riqueza de detalhes é tanta que conseguimos imaginar com muita facilidade tudo que é descrito. 

Por fim, “Clara dos Anjos” é uma obra interessante e essencial. Demorei um pouco para conhecer mais a fundo as obras desse autor, percebi que com uma linguagem simples e as críticas, muitas vezes ásperas, aos temas mais diversos e espinhosos da nossa sociedade, ler Lima Barreto na atualidade, é uma busca para o entendimento da formação histórica brasileira, assim como entender a sua contribuição para a formação da literatura afro-brasileira. 

Sobre o autor:
Lima Barreto  - Foto Reprodução: Domínio público
 Afonso Henriques de Lima Barreto, nasceu em 13 de maio de 1881 no Rio de Janeiro, ficou mais conhecido como Lima Barreto. Jornalista de profissão, tornou-se escritor, pulicando romances, contos, crônicas, contribuindo também com produções em revistas e jornais no início do século XX. Sua primeira publicação data de 1909 com o Romance “Recordações do escrivão Isaías Caminha, depois em 1911, lança “Triste fim de Policarpo Quaresma”, nesse período as crises de depressão e alcoolismo aumentam, levando-o à sua primeira internação no ano de 1914. Após quatro anos da sua primeira internação e tendo agravamento nos sintomas, tem uma segunda internação sendo aposentando em 1918. Tendo a saúde cada vez mais debilitada, falece em 1 de novembro de 1922, em decorrência de problemas cardíacos, ano em que finaliza o romance “Clara dos Anjos” que só vem a ser publicado em 1948, vinte e seis anos após a sua morte. O título de escritor reconhecido, vem postumamente, pelo descobrimento de diversas obras e graças ao esforço de Francisco Assis Barbosa junto com diversos pesquisadores. Hoje Lima Barreto é considerado um dos maiores e mais importantes escritores brasileiros. Deixou diários e obras inacabadas, frutos das suas internações, como por exemplo, “Cemitério dos vivos”. Assim como “Clara dos Anjos”, diversas obras suas são publicadas após a sua a morte, das mais recentes podemos citar “O Subterrâneo do Morro do Castelo”, escrito em 1909, publicado em 1997 e “Sátiras e outras subversões: textos inéditos” (2016) com organização de Felipe Botelho Côrrea.

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